segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Refletir 2014 para avançar em 2015

por Marcio Ornelas

As jornadas de junho e as eleições

As Jornadas de Junho foi um grandioso movimento de massas que ocorreu no Brasil inteiro em 2013. Elas mobilizaram milhões de pessoas e colocaram nas cordas o conforto da elite política que governa o país. Um movimento essencialmente urbano, que começa com o desgaste gerado pelo aumento tarifário dos transportes públicos, mas que se desdobra no questionamento aos péssimos serviços de educação e saúde públicas, assim como no aumento do custo e da insalubridade da vida nas grandes cidades. Ainda que sejam uma expressão do voluntarismo da insatisfação e da revolta acumulada, as jornadas de junho resgataram o debate sobre o direito à cidade, tal como evidenciaram as consequências mais nocivas da produção capitalista do espaço.

Nesse ponto é necessário fazer uma distinção importante. O direito à cidade não é simplesmente a luta pelo acesso aos equipamentos urbanos, advindos dessa produção capitalista do espaço. Na concepção lefebvreviana (e também marxista), o direito à cidade é o direito à produção do espaço. É pensar a cidade coletivamente e inverter essa lógica onde poucos decidem os rumos do urbano, é a inclusão dos excluídos em todas as etapas. Portanto, é muito significativo para a conjuntura que tenhamos milhões de pessoas tomando as ruas, exigindo maior participação na política e também denunciando as mazelas da vida urbana. Ainda que toda essa onda de indignação não tenha se desdobrado numa alternativa política que se proponha a disputar o poder e efetivar as mudanças cobradas, devemos encarar as jornadas de junho como o início promissor de um processo que já culmina na elevação do nível de consciência da população.

Mas o resultado dessas eleições colocou um questionamento pertinente: tudo continuou como estava, afinal, teve mesmo a tão falada elevação do nível de consciência da população? É preciso estabelecer alguns parâmetros. O primeiro deles é que as eleições sempre foram e vão continuar sendo uma representação distorcida da realidade. Alguns elementos como a cobertura midiática desigual, a desproporção do tempo nas propagandas de TV e a influência do poder econômico, favorecem os grandes (e velhos) partidos e prejudicam fundamentalmente os partidos de esquerda - que ainda se agarram à princípios e programas para tocarem suas campanhas. Diante de tantos fatores que deixam as eleições “viciadas” e influenciam abruptamente as informações que chegam até a população, não havia qualquer garantia que toda a indignação manifestada em junho de 2013, fosse desaguar num afluente à esquerda. O que nos leva ao ponto central: o sentimento por mudanças potencializado nas jornadas de junho, ainda que de forma confusa, apareceu com muita força nessas eleições. Basta lembrar a ascensão meteórica de Marina e posteriormente a de Aécio, sendo que nenhuma dessas grandes variações de intenção de voto representou um crescimento da candidata Dilma. Em outras palavras, existia um amplo setor da sociedade que estava buscando a alternativa mais viável para derrotar o governo do PT.

E aí não podemos absorver de forma ingênua o discurso com o qual o PT atacou os tucanos e consequentemente ganhou a eleição. Existiu nessas eleições um sentimento anti-petista e anti-governista muito forte. De fato, uma parte dele é nutrido por uma direita extremamente conservadora e raivosa. Mas precisamos lembrar que parte desse sentimento foi forjado no calor das lutas sociais, na dinâmica da luta de classes e dos movimentos de massas, no clamor diante dos escândalos de corrupção. Nutrido por pessoas comuns que perderam a esperança nesse governo. De forma extremamente habilidosa, o PT enveredou por uma retórica populista que consistia numa simplificação grosseira da realidade. Um pouco da essência desse artifício nas palavras de LACLAU, são relevantes para o debate:

O populismo “simplifica” o espaço político, substituindo um conjunto complexo de diferenças e determinações por uma dicotomia rígida, cujos dois polos são necessariamente imprecisos. (...) através de dicotomias do tipo povo versus oligarquia, massas trabalhadoras versus exploradores e assim por diante. Como podemos observar, existe nessas dicotomias, assim como naquelas que constituem qualquer fronteira político-ideológica, uma simplificação do espaço político (todas as singularidades tendem a agrupar-se em torno dos polos da dicotomia), e os termos que designam ambos os polos têm de ser necessariamente imprecisos, caso contrário não cobririam todas as particularidades que, segundo se supõe, eles devem reagrupar.

No cenário pintado cuidadosamente pelo PT, toda complexidade que envolve o tecido político desaparece, para dar lugar a uma objetificação demasiadamente rasa da realidade que se estrutura na estipulação de dois polos extremos. De um lado temos Dilma Rousseff, defensora dos pobres e dos excluídos, muito embora tenha na sua base grande apoio de setores da burguesia e do fundamentalismo religioso. Do outro lado temos Aécio Neves, representante das elites e dos setores mais reacionários, ainda que evoque de maneira errática o desejo por mudanças de parcela do povo.

Fortalecer uma alternativa de esquerda coerente

Nem só de distorções foram feitas as eleições em 2014. A expressiva votação de Luciana Genro, a grande aceitação que sua candidatura teve entre setores progressivos da sociedade, tais como a juventude e os movimentos sociais, revela um crescimento qualitativo do PSOL. Isso é corroborado pelo crescimento da bancada federal e das bancadas estaduais. A eleição sempre é um terreno difícil para os partidos de esquerda, seria difícil imaginar um desempenho tão satisfatório se o país não tivesse passado pelas jornadas de junho e isso não significasse um aumento do nível de consciência da população.

Mas é preciso fortalecer ainda mais essa alternativa de esquerda, para que o PSOL seja um postulante real na disputa pelo poder. Criar uma terceira via que seja capaz de quebrar o cenário dicotômico, podendo aglutinar os indignados que não aceitam mais a falência do governo petista e recorrem a uma “alternativa viável” para derrotar o PT, assim como os setores progressistas que ainda defendem o PT diante da ameaça de um novo governo tucano. Apesar de todas as flutuações do cenário eleitoral, esse ciclo vicioso se repete desde as eleições em que Lula disputava a reeleição.

Por fim, é necessário destruir o último mito alardeado por aqueles que facilmente aceitam o mundo de ilusões petistas. Uma eventual derrota do PT para o PSDB numa disputa presidencial, não significará necessariamente a decomposição e destruição do partido dos trabalhadores, muito menos o fim das possibilidades da esquerda. O PSDB perdeu quatro eleições seguidas para o PT, o que não significou o seu esfacelamento simplesmente por que o PSDB continuou sendo a alternativa mais confiável para a burguesia, sendo um instrumento ainda útil para os interesses da classe dominante. O que realmente tem força para destruir o PT é a possibilidade de surgir uma alternativa de esquerda coerente, que seja a superação histórica do partido dos trabalhadores e que tenha a capacidade de se colocar para a classe como a verdadeira ferramenta que pode transformar a sua realidade.

Cabe ainda destacar que o governo do PT já totalmente adaptado ao regime burguês, com sucessivas traições de classe e política de cooptação dos movimentos sociais, representou um veneno muito mais nocivo para o avanço da consciência da classe trabalhadora, do que qualquer outro governo na história. Não à toa, num período onde a luta de classes se acirra, o sentimento antipetista cresce vorazmente. Não ter uma alternativa que tenha força para disputar os rumos dessa indignação é a nossa grande debilidade.

Seja como for, temos de estar preparados para dizer que PT e PSDB representam a mesma velha política, variações muito pequenas de um mesmo projeto e responde à mesma classe social. Nenhum dos dois dará cabo das transformações que esse país precisa. A tarefa dos setores conseqüentes e progressistas da sociedade é trabalhar para dar fim a esse ciclo vicioso de velhas saídas, dar fim a essa dicotomia claustrofóbica que joga um véu por cima da realidade. Destruir essa ordem estabelecida e não emprestar suas forças para fortalecê-la!

-------------------------------------------------------------------------
Marcio Ornelas, 25 anos, professor de geografia. Militante do coletivo Juntos! e vice-presidente do PSOL São Gonçalo/RJ.

Nenhum comentário:

Postar um comentário