domingo, 13 de maio de 2018

130 anos da Abolição da Escravatura que não nos libertou plenamente

por Prof. Josemar Carvalho


Navio Negreiro
Em 13 de maio de 1888, através da Lei Imperial nº 3353 (com apenas dois parágrafos) foi sancionada a Lei Áurea, que dava um “fim formal” à escravidão negra no Brasil.


Longe de representar a democracia racial, a Lei assinada pela Princesa Isabel, em data comemorativa ao nascimento de seu bisavô Dom João VI, não colocou o negro em situação de equidade social, politica e econômica no país.

As marcas profundas do período escravocrata ainda estão presentes. O racismo é parte constituinte da sociedade brasileira. A construção e a formação histórica da sociedade brasileira é carregada de estereótipos pautados na discriminação racial.

No Brasil, o racismo não é um preconceito pontual contra um grupo minoritário que visa se estabelecer como gueto. É contra a maioria da população. O capitalismo brasileiro se estruturou tendo como base exploração/opressão racial. O rosto da classe trabalhadora no Brasil é negra. Recebendo os piores salários e tendo as menores oportunidades.

Neste texto temos o objetivo de dialogar brevemente sobre o papel da escravidão na constituição de nosso país, a resistência histórica sobre ausência de politicas publicas para os negros após a Lei Aurea, os pressupostos básicos para luta contra o racismo e apresentar alguns programáticos esta mobilização.


Como simples brochura, este texto não tem a intenção de encerrar o debate, mas sim de aproveitar a data para fazer reflexões e apontar perspectivas necessárias sobre antirracista no nosso país.

A desumanização começa com sequestro na África ...

Intelectuais racistas de várias matizes tentam ignorar a desumanidade do processo escravocrata na América. Uns argumentam que foi uma fase importante da história, que devemos relativizar o olhar. Outros subestimam os processos de conflitos e superdimensionam negociações entre  as partes.

Mas nenhum desses “racistas modernos” conseguiu diminuir em seus discursos, o papel nefasto de um navio negreiro.

Após ser aprisionado na África, o negro era “transportado” para as Américas, em embarcações  que comparadas ao dos dias de hoje, seriam de pequeno porte. Altas concentrações eram alojadas nestes navios que levavam grupos humanos acorrentados em espaço inferior 4 pessoas por m2. Condições de higiene não existiam. Doenças se proliferaram com facilidade. O direito a alimentação e água era restrito. A previsão de morte dos escravos era 30%. O suicídio era muito comum. O Banzo, doença caracterizada por uma tristeza profunda, matava os nossos ancestrais.

Quando chegava nas regiões portuárias brasileiras, com corpos semi-nus os negros eram vendidos como animais. Famílias eram separadas, mulheres e crianças eram mais desvalorizados. Tratados como um produto. Sem valor imaterial, sem nenhuma afetividade. Como simples coisa.

Mas as desuminidade não para aí ... A senzala não tinha nenhuma condição de higiene e de humanidade, um depositário humano. Negros acorrentados de línguas diferentes e muitas vezes de grupos rivais eram posto no mesmo lugar. A mortalidade de “pretos recém chegados” era um fato de alto relevância para fazendeiros da época.

O trabalho forçado nas lavouras, canaviais e minas de extração era intenso, o que colocava a expectativa média dos negros escravos inferior a 40 anos de idade. Trabalho forçado do nascer ao por do sol.

O estupro da mulher negra era constante, pelas condições de objetificação da sua vida, pela privação da sua individualidade e pela seu papel tido como inferior na sua patriarcal-escravocrata. Era prática comum a separação entre as mães e suas filhos. Pesquisas revelam que era grande o número de abortos realizados por mulheres negras para impedir que seus filhos não nascessem nas péssimas condições.

Onde tem poder, tem resistência ... A luta negra no Brasil
  
A historiografia oficial e os romances abolicionistas do final do século XIX, aliados a ações conscientes que visam a apagar a nossa memória, contribuíram produziram no senso comum, a ideia de pouca resistência negra. Uma falácia que iremos desconstruir nos próximos parágrafos.

A primeira ideia do senso comum é ideia de que não houve participação negra nos eventos da história brasileira. Os soldados da guerra do Paraguai, os trabalhadores que construíram várias cidades e monumentos no período colonial, imperial e até republicano tinham cor, a negra.

A resistência negra não foi um ponto na história brasileira, como a sociologia branca racista tenta nos passar. Quilombos, comunidades de organização negra, existiram em todo o momento da história brasileira. Trazendo valores e conhecimentos adquiridos na África e aprimorados no Brasil. Para nosso mestre Clovis Moura, é preciso reler a história do brasil sobre o prisma negro.

O Quilombo de Palmares, com suas aldeias e cidades, não era um ponto desorganizado. Era um reino clandestino no meio da selva na Serra de Barriga. Quilombo de Ambrósio e de Campo Grande chegaram a organizar mais de 10.000 pessoas cada. Isso sem falar das mais de 1000 comunidades reconhecidas. A Revolta dos Males feita em Salvador em 1835, feito por escravos muçulmanos, é refletida pela sua capacidade de organização.  

Como dizia Foulcalt, “onde há poder tem resistência”. A luta negra não é um fato a ser menosprezado. Apesar de muitas lacunas na historiografia, é possível observar várias lutas ao longo dos diversos séculos. Os quilombos brasileiros foram a maior exemplo desta auto-organização.


A escravidão é um pilar histórico das relações de trabalho no Brasil

Desde o período colonial, a mão-de-obra negra foi a força de trabalho brasileira. Os primeiros negros chegaram no Brasil entre 1532 e 1538, visando o cultivo dos produtos tropicais.

A opção pelo trabalho escravo negro estava diretamente ligada ao trafico negreiro e necessidade da Corte europeia e do Clero. A intensificação do trafico negreiro ocorreu no Século XVII. A existência majoritária de escravidão negra em nosso país não apaga o uso do trabalho dos índios em vários momentos da nossa história.

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. O Império Brasileiro (1822-1888), marcado pelas pactuações entre os monarcas e elites escravocratas da época, “segurou” ao máximo o processo de libertação dos escravos. A unicidade do território, a preservação da monarquia e manutenção da escravidão, foi um tripé construído que forneceu bases para existência do Império Brasileiro.

A unicidade do território fez com as terras do antigo império português se  constituíssem num único país, diferente da América Espanhola, que se fracionou em vários países.

A preservação da monarquia, garantiu de forma “sui generis” a linha de continuidade da linhagem portuguesa a frente do “novo Imperio” brasileiro. Contradições são visíveis, como que um monarca português deu grito do Ipiranga contra o seu próprio pai e na sequencia foi substitui-lo. Uma das Contradições que a história tradicional não irá apontar.

A escravidão foi um pilar econômico das relações de poder da época. Isto explica o fato de que da abolição brasileira ser a última entre os países independentes da América. O seu atraso foi um produto de um conjunto de pactos entre as elites regionais da época, que ao longo dos anos foram negociando saídas transicionais diante pressão internacional inglesa e do “medo” de revolta negra como teve no Haiti.


A lei Aurea não apresentou politicas de integração do negro à sociedade

O contexto conjuntural de 130 anos atrás era marcado pela falta de representatividade política do Império e pela mudança gradual nas relações de trabalho servil no Brasil. Estudos apontam que menos de 10% da mão de obra do ano da abolição era escrava. Processos anteriores (Lei de Terras -1850; Lei do Ventre Livre-1871; Lei do Sexagenários – 1885, entre outras) já sinalizavam para o fim da escravidão.

Longe de representar a “democracia racial”, a Lei assinada pela Princesa Isabel, em data comemorativa ao nascimento de seu bisavô Dom João VI, não colocou o negro em situação de equidade social, politica e econômica no país. A lei Áurea não veio combinada com nenhuma politica efetiva de inserção do negro na sociedade brasileira. Não teve reforma agraria, nem incentivo financeiro e muito menos reforma urbana. O negro foi posto a margem da sociedade e nela sobrevive ...

Por lado a elite branca escravocrata se transformou nos grandes proprietários de terras. A Lei de Terras de 1850 (colocou o valor de compra como fator determinante para propriedade) colaborou decisivamente para consolidação das grandes propriedades já existentes. Transformando-as nos latifúndios do nosso tempo.

Por outro lado, os negros ao longo dos seus 100 primeiros anos nunca tiveram uma politica de afirmativa. Do ponto de vista geral, a politica de cotas nas universidades é primeira politica afirmativa de grande porte para o povo negro. Muito tempo se passou e nada foi feito!


As Condições do negro no Brasil de hoje

O Brasil tem uma grande história do povo negro no planeta. Pois possui a maior negra fora da África. Dados já revelam que a maioria da população do nosso país é negra. Reparar o passado escravocrata é premissa básica para iniciar qualquer debate sério sobre questão racial negra.

A Lei Áurea pautou o fim formal da escravidão, mas não trouxe nenhuma política efetiva para reparação do povo. Fomos abandonados, sem moradia dignas, sem condições básicas de sobrevivência.

A escola pública brasileira, local de estudo dos negros, é sucateada. A sua estrutura interna ainda é pouco atraente para os nossos filhos e com poucos recursos. Os profissionais de educação são desvalorizados propositalmente.

Os serviços básicos de saúde pública nas periferias são precários. As filas de espera para operações e tratamentos revelam que nosso país, a saúde de qualidade não deve ser para maioria da população.

Dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostram que os negros recebem 40% a menos do que os não-negros. O desemprego, os baixos salários e as péssimas condições de formais de trabalho são realidade para o povo negro. Situação que tende a piorar com a reforma trabalhista e com o PEC de gastos (que congela investimentos públicos nos próximos 20 anos).

Nosso país tem a segunda maior população carcerária do planeta. É na sua maioria composta por negros e periféricos. O Estado Brasileiro não tem nenhuma perspectiva de ressocialização. Pelo contrário fecham escolas, em momentos de crise de segurança pública.

A morte pela violência é comum nas periferias. O genocídio da juventude negra é comprovada em números. E para piorar quando um dos nossos levanta sua voz, é perseguido, torturado e assassinado. O exemplo mais recente é o assassinato da companheira Marielle Franco, onde clamamos por justiça.


Algumas premissas iniciais para o trabalho da luta racial

Como vimos, o racismo é parte estruturante da sociedade capitalista brasileira. Entender este pressuposto é uma premissa fundamental para lutarmos por igualdade no nosso tempo.

Não haverá uma verdadeira inserção do povo negro enquanto existir capitalismo e suas formas de exploração. Os negros ganham os menores salários. Quanto mais precarizada a classe trabalhadora, mais negra ela será.

Um programa socialista para o Brasil deve incorporar as pautas e expressar a luta povo preto em nosso país. Isto não quer dizer que não podemos lutar medidas transitórias e parciais como parte do fortalecimento da nossa luta.

Outro aspecto fundamental que devemos levar em consideração é que a população negra no Brasil é maioria. Dados do IBGE apontam que 51% da população do nosso pais já se autodeclara negra, diferente dos anos anteriores onde a “ideologia do embranquecimento” mascarava os dados.

Compreender isto é fundamental para avançarmos na luta politica. Não somos um gueto, somos a maioria. Queremos a nossa reparação histórica e social. Não queremos apenas nos inserir no mercado de trabalho. Queremos ser dirigentes. Queremos cursar faculdade. Ser médico. Ser professor. Ser advogado. Ser Juiz. Queremos ter a nossa oportunidade.

Uma reflexão também necessária, é de que diferente da construção histórica dos Estados Unidos e da África do Sul, onde os espaços foram abertamente segregados, no Brasil, a segregação racista se apresentou de maneira diferente. Como o processo não foi “institucionalizado”, a segregação espacial existente ficou “velada”. Os muros sociais e raciais são invisíveis aos olhos do senso comum.

A compreensão deste pressuposto nos coloca numa luta aberta contra a concepção liberal de meritocracia. Combater a meritocracia é combater a exclusão. Discursos meritocráticos não levam em consideração as condições sociais dos indivíduos em questão. Como comparar um jovem negro que mora no Morro do Feijão no bairro do Paraíso em São Gonçalo, que estuda numa escola pública altamente sucateada, que trabalha oito horas por dia, com outro filho de um empresário rico da Zona Sul do Rio. O discurso meritocrático não leva em consideração tais diferenças. Igualam coisas diferentes para manter a ordem social no mesmo lugar.

Um revolucionário deve observar para além da aparência, deve ir na essência dos fenômenos e nas raiz dos problemas. Para isso é fundamental, compreender que a luta pela libertação do povo negro passa por uma luta politica por direitos sociais quer tenha por estratégia a luta global contra o sistema capitalista.

Construir uma pauta de lutas para o povo negro, pobre e trabalhador neste período é fundamental!

Nesta parte final deste artigo, temos o objetivo dialogar sobre propostas iniciais para mobilização da população negra brasileira, que como já afirmamos é maioria da classe trabalhadora do nosso país.

Entendemos tais pontos como parte de programa proletário transitório de luta socialista em que a população negra se mobiliza por propostas imediatas que visam acumular/resistir diante de nossos objetivos históricos.

Como afirmamos no ponto anterior, a luta de classes no Brasil passa por entender a a transversalidade da luta racial no contexto histórico de nacional territorialidade nacional.

Diante disso, as listaremos algumas propostas iniciais de mobilização e de luta na sociedade:

1)    Reparação para as comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, caboclas, seringueiras e demais povos oprimidos!
2)    Implementação real e efetiva das leis 10.639/2003 e 11.645/2008  nas escolas, que apontam para o estudos sobre a questão negra no Brasil e história africana;
3)     Defesa das cotas raciais nas universidades públicas brasileiras e nos serviços públicos!
4)    Emprego sem discriminação racial ou de gênero
5)    Lutar contra as reformas trabalhista , da previdência e a PEC de gastos que retira direitos da classe trabalhadora brasileira!
6)    Denunciar o genocídio do povo negro e pobre das comunidades e das favelas;
7)    Prisão dos assassinos de Marielle Franco e Anderson. Queremos justiça!
8)    Liberdade para Rafael Braga e para todos os injustiçados pela justiça racista!
9)    Liberdade de culto – Contra toda forma de intolerância religiosa;
10) Combater o mito da democracia racial!
11) Saneamento básico e programa reforma urbana democrática;
12) Universalização dos serviços públicos de saúde, educação, transporte e assistência social;
13) Desmilitarização das policiais militares!
14) Enaltecer a luta e a identidade do povo negro na construção brasileira, nenhuma criminalização a nossa cultura!
15) Contra as diversas formas de violência contra as mulheres e contra hipersexualização de nossos corpos!
16) Democracia real com participação popular!

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Josemar Carvalho, 42 anos, professor universitário e da rede pública de ensino. Coordenador e Educador Popular da Rede Emancipa. Presidente do Diretório Municipal do PSOL de São Gonçalo- RJ.



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