por Marcio Ornelas

Já a burguesia não tem tamanha facilidade. Não se pode dar simplesmente dez tapas na cara do povo, dizer que devem trabalhar até morrer e esperar que tudo transcorra bem. Difícil seria a classe política sustentar uma reforma como essa com argumentos verdadeiros como: precisamos parar de gastar dinheiro público para garantir o benefício do aposentado; precisamos desonerar o empresário que contribui demais ao INSS; ou temos que manter o trabalhador por mais tempo no mercado e reduzir o valor do seu benefício. Sob a perspectiva da burguesia, a necessidade da reforma da previdência vem fundamentalmente dessas demandas. Portanto, é necessário construir uma narrativa fantasiosa, calcada em argumentos mentirosos e que tem como único objetivo mascarar as reais intenções que se escondem sorrateiramente por trás da proposta da reforma da previdência.
A proposta desse artigo é desconstruir o principal pilar que sustenta a narrativa fantasiosa que tanto as elites quanto a grande mídia querem empurrar goela abaixo: a de que existe um rombo gigantesco na previdência e que se a reforma não for feita, vai colapsar as contas públicas do Brasil ao ponto de que a aposentadoria de todos os brasileiros dessa e das futuras gerações estarão comprometidas.
Podemos afirmar categoricamente que esse argumento é uma farsa. Mas é preciso explorar e compreender os mecanismos e os truques que o governo utiliza para “construir” o rombo da previdência social.
A tentativa de desvincular a previdência social do conceito de seguridade social
A primeira forma de construir falsamente um deficit previdenciário, é ignorar a constituição de 1988 e fazer um cálculo que não possui nenhum precedente ou amparo legal. O artigo 194 da constituição de 1988 determina que a previdência social, a assistência social e a saúde, fazem parte de um campo de amparo e proteção ao trabalhador denominado seguridade social. O artigo seguinte determina todo o conjunto de receitas que vão financiar esse grande campo, dentre elas estão a contribuição social do trabalhador, a contribuição social do empregador e uma série de impostos e outros tipos de receita, que servem exclusivamente para financiar a seguridade social.
Isso não é um invencionismo maluco. O modelo previdenciário de repartição brasileiro, calcado no princípio da solidariedade, se espelhou no modelo europeu do pós-guerra. Pensado para ser sustentável com as contribuições dos trabalhadores, dos empregadores e também do Estado.
Mas na sua ânsia de construir e vociferar ao máximo a narrativa do rombo previdenciário, o governo apresenta uma conta na qual ela excluí todas as receitas arrecadadas pelo Estado, que estão constitucionalmente vinculadas a seguridade social, da qual a previdência é uma parte indissociável. E apresenta um cálculo em que leva em consideração apenas duas fontes de receita: a contribuição dos trabalhadores e a contribuição patronal, diminuindo pelo total gasto com os benefícios pagos pelo INSS. Essa manobra contábil produz um resultado sempre deficitário para a previdência social.
Mas se retomarmos o bom senso e a honestidade intelectual, fazendo a conta da maneira correta, somando todas as fontes de receita que financiam a seguridade social e comparando com o total de gastos nas áreas de saúde, assistência social e previdência, veremos que em vez de um rombo gigantesco, temos uma série histórica enorme de superavit. A imagem abaixo dá uma melhor dimensão do quanto a seguridade social tem sido superavitária por mais de uma década.

Essa série histórica aponta para uma média de superavit de R$ 50 bilhões ao ano. Tendo em 2012 atingido o recorde de R$ 83 bilhões.
A exclusão de receitas da seguridade social e a agregação de despesas estranhas a esse conceito
Em 2016 e 2017 foram os únicos anos em que a seguridade social apresentou um resultado deficitário. Mas ainda assim, o governo ao apresentar as suas contas oficiais, fez uma série de manobras para inchar esse deficit.
Vamos pegar como base o relatório apresentado pela ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) sobre as contas da seguridade social no ano de 2017. Nesse mesmo ano o governo apresentou um deficit para a seguridade social de R$ 290 bilhões. A forma como o governo chega a esse número é bastante ardilosa, excluindo da conta receitas que pertencem a seguridade social como o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) ou sem levar em conta os 30% que são retirados via DRU (Desvinculação de Receitas da União). O montante excluído da conta é de R$ 159 bilhões.

Ao mesmo tempo em que exclui receitas, o governo agrega despesas que não tem absolutamente nada a ver com a seguridade social. Na conta apresentada pelo governo, estão incluídos por exemplo o regime da aposentadoria do servidor público e dos militares.

Se colocarmos tudo no lugar e desfizermos a malandragem contábil do governo, vamos aferir que o deficit é bem menor que o que foi apresentado oficialmente.

Explicando o deficit recente da seguridade social
Não chega a ser um segredo que há alguns anos o país atravessa uma profunda crise econômica. Não cabe nesse artigo aprofundar os aspectos que conduziram o país para a recessão, mas sim dimensionar o quanto essa crise impacta negativamente a arrecadação da seguridade social e como as medidas tomadas pelos governos de Temer e de Bolsonaro, tornam mais grave a situação.
No modelo de repartição brasileiro, tudo que é arrecado serve para financiar os benefícios de quem já está aposentado. Então a seguridade social depende de uma economia saudável para se manter sustentável, como ela vem sendo ao longo dos anos. Acontece que a crise econômica que o Brasil atravessa tem consequências drásticas e diretas para a seguridade social: 13 milhões de desempregados que não contribuem para o INSS e uma incapacidade do setor produtivo de gerar postos de trabalho formais. Duas das principais fontes de receita da seguridade social estão seriamente combalidas enquanto o Brasil se afunda nessa crise. Isso sem mencionar os 37 milhões de trabalhadores que atuam na informalidade. Para completar a reforma trabalhista do governo Temer, que se combina a reforma da previdência num objetivo comum (destruir a seguridade social), flexibiliza ainda mais as relações de trabalho no Brasil, gerando instabilidade e fragilizando ainda mais a arrecadação da seguridade social.
Dois dos principais impostos que financiam a seguridade social, sofrem em demasia num momento de crise econômica. A CSLL (é imposto sobre o lucro líquido das empresas) despenca num momento de recessão em que as empresas apresentam dificuldade e o COFINS (imposto embutido em tudo que se consome) também reduz a falta de políticas para estimular o consumo. A primeira medida do governo Bolsonaro foi reduzir o valor do salário mínimo para o ano de 2019, o impacto que isso tem sobre a seguridade social ainda nem pôde ser mensurado.
Cabe destacar a lista gigantesca de sonegadores da previdência social. A estimativa da ANFIP é de que hoje as grandes empresas e bancos brasileiros devam um montante de R$ 500 bilhões. Sem contar a farra das isenções fiscais oferecidas pelo governo aos empresários brasileiros. Sobre isso o professor Eduardo Fagnani, um dos maiores especialistas brasileiros em previdência, se manifestou em entrevista recente da seguinte forma:
“A opção política do atual governo é reduzir os direitos sociais das camadas mais empobrecidas para reduzir a carga tributária dos grandes empresários e manter a política de isenção fiscal intacta. Se somarmos R$ 400 bilhões de isenções fiscais, R$ 400 bilhões de juros e 500 bilhões de sonegação, temos R$ 1,3 trilhão todo ano, são mais de 13 anos de economia com a reforma da Previdência”
O governo toma medidas deliberadas para sabotar a arrecadação da seguridade social. Mesmo com toda a crise, ainda assim a seguridade social foi deficitária em apenas dois anos. Não é nenhum absurdo afirmar que tão logo a economia do Brasil volte a crescer, a seguridade social voltará a ser superavitária.
Mas fica evidente que esse não é um debate de cunho econômico. Do ponto de vista econômico dizer que a seguridade social é insustentável é uma aberração comprovada por números que são categóricos. Estamos diante de um debate ideológico sobre qual é o papel que o Estado deve ter na garantida de direitos e na seguridade dos trabalhadores.
Evidentemente não concordamos com a perspectiva ultraliberal do governo Bolsonaro e muito menos com sua proposta de reforma previdenciária que na prática vai extinguir o benefício da aposentadoria e a seguridade social por tabela. É preciso denunciar que todas as premissas argumentativas que sustentam essa reforma são absurdamente fraudulentas.
Vamos às ruas para barrar essa reforma que quer impor retrocessos gigantescos para a classe trabalhadora brasileira.
Vamos às ruas para barrar essa reforma que quer impor retrocessos gigantescos para a classe trabalhadora brasileira.
0bs: Artigo originalmente publicado na Revista Movimento.
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Marcio Ornelas é professor de geografia, presidente do PSOL São Gonçalo e coordenador da Rede Emancipa de educação popular.